domingo, 15 de novembro de 2009

O tapete da sala

O tapete da sala



Yes, I know that. Sei que é patético. Sei que estou aqui agora, sozinha, sentada no tapete da sala, tendo uma conversa pessoal com o micrsoft word do meu computador depois de 10 horas ininterruptas de DVD. Sim. Um maço, cervejas, 17 episódios, uma tarde. Sozinha. E, sim, continua tudo igual.



Todo momento de solidão deve ser valorizado. Todo e qualquer momento de solidão. Quando ninguém mais fala a gente se escuta perfeitamente.


Sim, também acho que as coisas não estão muito bem. Tenho preferido ficar sozinha a acompanhada ultimamente. Não que não gostasse antes, mas agora isso tem um gosto diferente.


Converso, rio, caminho. Em cinco minutos estarei vinte passos à frente, ouvindo os detalhes da conversa que vem lá de trás, observando cada cor de cada letra de cada placa. As buzinas dos carros são diferentes demais. E aquele cara insiste em continuar lá. Todo dia, às 6:50 da manhã ele já está ali. De segunda a sábado, encostado na parede do prédio 666, da Santa Rita Durão com Rio Grande do Norte, em frente a uma árvore, enrolando seu fumo. Parece ter uns sessenta e poucos anos, fala e ri sozinho e não costuma mexer com as pessoas na rua.



E de segunda a sábado eu chego cedo no cursinho, cumprimento o cara apelidado carinhosamente de “gente-boa” e ele solta um resmungo ou só engole a saliva pra economizar metabolismo. Passo na lanchonete ao lado, “dou bom” dia ao dono e ele me responde com a pergunta “tudo bom?”. Peço meu maço de carlton red, um café e um pão de queijo. Nesse horário eles são sempre os mesmos. O João, a Raquel e uma outra um pouco mais alta e morena, de quem eu não sei o nome. Colocam o pão de queijo num pacotinho e me servem um café triplo no copo descartável. Como é que eu fui esquecer o nome da lanchonete assim?


Pego a carteirinha, que quase sempre está no último lugar em que procuro na mochila. Passo, peço licença, entro na sala, sento-me ao lado do Mateus e ele olha pra mim com um sorriso lindo que quer dizer “seu café é o mais cheiroso do cursinho”.


Suporto até as 9:30 da manhã em uma sala cheia de gente que não sabe o que quer. Dizem que querem passar na federal, mas na verdade não sabem o que querem. 80% vai tentar medicina, alguns engenharia, direito, geologia. Até pensam com as próprias pernas mas sempre acham que estão errados, pois o professor sempre tem razão, não é? A trilha pisada é a trilha deles. Quase todos os professores são deuses ali.


Intervalo. Desço a escada e acendo o cigarro ao pisar no passeio ou um pouco depois. Encontro os colegas na lanchonete do Denes, meu “brother”. Pergunto “e aí? bom?” ou “e o cruzerão,hein?”. Peço um café e um pão de queijo, às vezes um misto quente, às vezes um enrolado de presunto e queijo. Folhado só de vez em quando porque nem sou tão fã assim, mas as meninas gostam tanto que eu ainda tenho esperanças de achá-lo muito bom um dia. Faço as pessoas rirem. Sempre. Termino de comer, sempre sobra um pedacinho do pão de queijo ou da massa do enrolado. Acendo mais um cigarro, em poucos minutos a gente sobe e eu acabo de fumar lá na porta, onde encontramos outros coleguinhas pra eu fazer rir.


Volto à sala, começa a aula. Tenho desenhado bastante. Escrevo na agenda meus planos de estudo que nunca são seguidos. Faço uma piadinha aqui, outra acolá. Suporto.Acaba a aula. Fumo. Rio. Almoço. Mesmos lugares. Mesmas companhias. Mesmos figurantes desconhecidos. Mesmo “bom apetite” ou “pode ir ao caixa”.


De acordo com o dia da semana, o restante da tarde é diferente.


Mas ao final é tudo idêntico.


E durante essa minha overdose de DVD eu me questionei pela primeira vez sobre algo. Me questiono o tempo inteiro, sobre tudo. Questiono o mundo sobre o mundo o tempo todo. E eu nunca tinha me questionado sobre isso.


Será mesmo que serei a médica que sempre sonhei ser?


DVDs. Hoje foram mais um dos vícios. Mortes demais pra um dia só. E no mundo nada mudou depois de dez horas de DVD. Nada. O tempo morreu.


Não passou, não parou. Deixou de existir.


E enquanto eu vi por dez horas aquele romancezinho adolescente, do hospital perfeito, com médicos bonitos e com problemas que quase sempre se resolvem, tudo continuou no lugar. O tempo morreu.


É isso? É assim essa coisa de morte?


Porque quando eu vi meu vovô eu pensava nisso. Pensava onde ele estava, no que estava pensando. Ou qual seria o verbo? Porque não deve haver essa coisa de pensar depois que o corpo esfria daquele jeito. Deve ter outro nome. Porque é um fato, nem depois da morte as coisas podem ficar estáticas a ponto de não se “pensar”.


E quando eu cantava baixinho “só enquanto eu respirar vou me lembrar de você” no ouvido dele, não havia retorno. E quando eu o abraçava, aquele peito que me dava tanta segurança parecia tão diferente. E a blusa pólo verde parecia não o esquentar. E eu queria que ele fosse pegar um casaco, como da última vez em que nos vimos. Aquelas flores não tinham um cheiro tão bom quanto o cheiro dos seus bonés, que guardo no armário. Aquele véu branco estragava tudo. Incomodava a ele e a mim. Amassava o ramo de flores de Santa Teresinha. E a boca que falava embolado, que demorava horas pra mastigar um pedaço de bacalhau? A boca não se mexia mais. Colaram a boca do meu avô. É isso? Você nasce, cresce, vive, casa duas vezes, tem um bocado de filhos, netos, bisnetos e eles colam sua boca sem que você possa fazer nada? A boca dele estava colada e ele não conseguia me responder quando eu o pedia pra voltar. Ele não podia dizer que sabia que eu estava ali.


E no dia anterior ele me perguntou ao telefone, ofegante, que dia eu ia vê-lo. Eu gritei o quanto pude pra dizer “vou assim que der. No fim do mês, eu acho” e eu nem sei se ele ouviu. E eu decidi que iria no dia seguinte, mas nem sempre há muito tempo pras coisas nessa vida. E daquela vez não deu tempo. E naquele dia 6 de agosto de 2009 eu só queria que ele me percebesse ali. E ele não usava relógio.


E eu o amava demais. Eu geralmente amo as pessoas. Amo muito facilmente as coisas, as pessoas, os detalhes, o subentendido. E eu amo poder observar a vida, por mais que isso seja tão cruel. Amo perceber a vida, por mais que doa tanto.

Mas por mais que pense, observe, não consigo imaginar
o que é perder uma pessoa em suas mãos quando você tem o controle.


Já perdi uma pessoa em minhas mãos. O seu Antônio, de Salinas, em julho de 2008, no lado esquerdo do banco de trás de um celta prata, na estrada de terra a uns 10 km do hospital. E eu não sentia o pulso dele. E quando eu abri seus olhos, eles não se fecharam mais. O que mais eu podia fazer? Eu queria. Queria fazer tudo.


E quando se pode fazer tudo e ainda assim não adianta? Quando as coisas acontecem de repente? Quando uma embolia gordurosa mata um cara de 27 anos de idade que só havia quebrado a perna? Quando uma pessoa operada de varizes simples morre de meningite?


Isso devia ser suportável? Perdi meu vovô de quase 92 anos. Aceitável? Perdi meu vovô de quase 92 anos exatamente uma semana depois de dar um “até logo” a ele. Dei um “até logo” pra me despedir de outra pessoa e tive que voltar em exatamente uma semana pra dizer “tchau”.


E desde aquela quarta-feira, 5 de agosto, as noites de quarta-feira são estranhas nesse tapete da sala.


A gente se despede o tempo todo. A gente vive dizendo “até mais”, “falou”, “tchau”. E de repente isso não faz o menor sentido.


E eu gosto de facas. Facas são realmente muito legais. Elas cortam o pão, cortam o queijo, servem como chave de fenda às vezes. São realmente versáteis. Facas até salvam vidas. E o fio das facas é tão fino que mais parece essa linha tênue entre vida e morte. Esse limiar que há entre o tempo que a gente inventa e o tempo que não existe mais.


Quero usar facas. Quero cortar. Tórax, abdômen, intestinos. Quero ter o controle remoto da vida nas mãos e quero usá-lo pra tirar o “mudo” das pessoas, descolar a boca delas. Quero ver sorrisos e lágrimas de felicidade por ter cortado a barriga de alguém. Quero saber usar o fio da faca e quero ter sua medida exata.


Não quero perder o relógio, não quero perder a fala e não penso em ter que usar a cola. Porque o que há aqui tem uma freqüência inconstante e intensa. Extravasa a todo momento.


Vida. Escoa vida.
Mas a vida se esvai aos poucos sem a gente perceber.






Boa noite!

Beijos,

CP

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